Uma Alma que se encontra – Sidney Francez Fernandes


Agressivo, prepotente, impaciente e imprevidente. Se pudéssemos resumir a personalidade de Olegário em poucas palavras, seriam essas. Por outro lado, determinado e trabalhador. Ainda muito jovem, trabalhava e estudava. Cresceu trabalhando. Chegou a ter três empregos, simultaneamente.

De manhã trabalhava no escritório de uma revendedora de combustível. Não era bem o que mais gostava de fazer.

Mesmo com um salário inferior às suas ambições, seu trabalho era em uma empresa sólida, de tradição, com excelentes programas de aposentadoria e de saúde. “Tolerava” o emprego pensando na estabilidade e no futuro. Mas, não tinha “papas na língua”. Dizia para todos, em alto e bom som, que o salário mal dava para a mulher fazer as comprinhas na feira.

À tarde trabalhava como corretor de imóveis. Um vendedor nato. Ganhava dinheiro e muito prestígio. À noite trabalhava como diretor de um canal de televisão local. Começara como um simples “foca” (encarregado de pequenas reportagens). Crescera com a empresa. Mandava em muita gente, num verdadeiro contraste com suas demais atividades.

Nem se precisa dizer como chegava em casa: cansado e estressado. Quem aguentava suas idiossincrasias era a “Santa Amélia”. Como a Amélia da famosa música, a esposa era dedicada ao lar e a “apagar os incêndios” do Olegário. Ainda mais depois que passou a ter uma invejável renda mensal e um verdadeiro séquito de amigos e simpatizantes.

– Calma, Olegário! Aconselhava Amélia. -Não se trata as pessoas dessa maneira. E outra coisa, agora que você está ganhando bem, faça o seu “pé de meia”. Segure um pouco os gastos. E, apesar, Olegário, nos finais de semana, promovia as mais concorridas festas da cidade. E ai daquele que o contrariasse! Tirando os seus superiores hierárquicos, que poupava para não correr o risco de perder o emprego, Olegário não levava desaforo para casa.

Mas, como diria um velho ditado, “um dia a casa cai”. Numa tarde, quando estava na corretora de imóveis, recebe um telefonema. Era a secretária da emissora de televisão em que trabalhava à noite. Estranhou o telefonema. O proprietário queria falar com ele imediatamente. Largou tudo e foi até à emissora.

Chegando lá, além do dono, estavam reunidos os diretores de várias áreas, esperando por Olegário. Usando a palavra, o chefe maior foi direto ao assunto. Há muito tempo já vinham recebendo reclamações de clientes e funcionários.

Olegário não podia continuar com aquele gênio irascível e belicoso. A “gota d’água” fora a veemente reclamação do presidente de uma grande franquia da cidade. Sua esposa, dedicada a atividades filantrópicas, havia sido muito mal recebida por Olegário em uma de suas visitas à emissora.

Olegário, que se tivesse juízo teria aceitado as críticas com silêncio e sabedoria, despencou a gritar e a agredir verbalmente os diretores, acusando-os de “frouxos” e delatores. E ainda mais, com o tempo que tinha de casa, nenhuns deles tinha autoridade para criticá-lo. O proprietário, que jamais tinha presenciado semelhante comportamento, imediatamente exigiu sua retratação e, mais, que procurasse os ofendidos e pedisse desculpas.

Mais uma vez faltou juízo e ponderação a Olegário. Recusou-se peremptoriamente. Resultado: no dia seguinte recebia o “bilhete azul” do departamento de pessoal da empresa. Demitido, depois de 20 anos de casa.

Mas, como diria meu avô, “desgraça pouca é bobagem”. No dia seguinte, os sócios da corretora em que trabalhava no período vespertino souberam do ocorrido. Solidários com a emissora de televisão, que era uma de suas melhores clientes, escandalizados com a descrição da cena ocorrida no dia anterior e, temerosos de que o agressivo Olegário “aprontasse” alguma e viesse a causar prejuízos e perda de sua clientela, demitiram-no, sumariamente.

O impossível acontecera. De uma hora para outra o grande e prestigiado Olegário deixava de ser uma das figuras mais respeitadas e bem remuneradas da cidade para conformar-se com aquele que ele costumava chamar de “salário mixuruca” da empresa de petróleo.

Não mais festas, não mais bajuladores e drásticas mudanças. De nível social e de poder aquisitivo. Pior ainda fora o abalo emocional sofrido por Olegário. Com toda a capacidade que tinha, não obstante a idade – estava perto dos cinquenta – Olegário conseguiria bom emprego com “o pé nas costas”, isto é facilmente. Mas e o ânimo? E a vergonha?

Olegário limitou-se a tocar a vida humildemente. E o “empreguinho”, que ele tanto desprezava, passou a ser a sua única fonte de renda. Olegário vivia agora pelos cantos, arrasado e sem ânimo para qualquer reação. Sentia-se abandonado por toda a sociedade. Somente a esposa Amélia permanecia fiel e otimista ao seu lado.

E foi de Amélia que surgiu a ideia. Ele não poderia ter sido demitido pela emissora de TV daquela forma. Consideravam-no um autônomo e, com isso, nada havia sido pago a Olegário pelos 20 anos de casa. Muito a contragosto, Olegário contratou um advogado que garantiu que a reivindicação era mais do que justa. Tratava-se de “causa ganha”.

Com efeito, seis meses mais tarde Olegário fazia um acordo com a empresa e recebia polpuda indenização. Longe de considerar-se vencido e realizado, Olegário viu-se novamente investido de poder e dinheiro. Abriu um restaurante – Amélia tinha dotes culinários – e em pouco tempo lá estava Olegário de volta aos meios sociais. Emergia como fênix das cinzas. E Olegário voltava “com a corda toda”. Competente e bom administrador, em pouco tempo mandava e desmandava, como nos velhos tempos.

E foi aí exatamente que Olegário tornou a “derrapar” no seu mau gênio, na agressividade e na prepotência. Fora procurado pelo dono do prédio do restaurante. Ambicioso, vendo o progresso e a clientela de Olegário sempre crescente, vinha pleitear reajuste do aluguel. Queria mais dinheiro.

E Olegário? Tinha adquirido juízo? Aprendera com as dores anteriores? Não, não aprendera. Acreditando-se cheio de razões, esfregou o contrato na cara do proprietário do imóvel. A reação do locador foi fulminante. Pediu a desocupação do prédio a Olegário no prazo de 30 dias.

“ – Mas ele não tem esse direito! – Foi queixar-se Olegário ao seu advogado. “ – Olegário, você, homem ligado ao comércio e locação de imóveis, nunca ouviu falar da “denúncia vazia”? Dispositivo aplicável à locação que permite ao proprietário pedir o imóvel após o término de um contrato por prazo determinado, valendo-se do direito da não prorrogação do contrato. Não sabia? Mesmo assim destratou o dono e o enxotou daqui? Ah, Olegário. Você não tem jeito mesmo…” , desabafou o advogado.

Olegário levou a mão ao rosto, envergonhado e arrependido. Principalmente perante a esposa Amélia, que mais uma vez via os sonhos de paz e tranquilidade serem jogados no ralo, por causa da irascibilidade de Olegário.

Com a perda do excelente ponto, Olegário foi obrigado a desmontar o restaurante. Passou algumas máquinas para o filho, que tinha um negócio do mesmo ramo, vendeu o restante das instalações e voltou a entrar de cabeça numa “fossa” de doer. Olegário não tinha ânimo para mais nada.

Aposentara-se precocemente da empresa de combustíveis, para livrar-se logo daquela atividade que não o agradava.

Com isso, seu único ganho era uma aposentadoria muito modesta.

Iniciava-se para Olegário uma nova fase em sua vida. De frustração, de saudade dos tempos áureos, de reflexão e de necessária adaptação à vida que agora teria que trilhar. A dor do arrependimento era quase insuportável. Por que Olegário não conseguia sofrear seu bendito gênio belicoso?

E mais uma vez Amélia, realmente uma esposa de verdade, foi seu aconchego e seu refúgio. Compreensiva, amorosa, não abriu a boca para criticar Olegário. E ele agradecia a generosa mão de Deus por ter colocado ao seu lado aquela boa companheira.

E foi exatamente através de Amélia que surgiu a grande possibilidade de reencontro de Olegário com Deus e consigo mesmo. Secretamente, a esposa passou a frequentar um pequeno centro espírita da periferia. Casa humilde, mas muito bem orientada pelo Senhor Ricardão. O aumentativo devia-se à altura descomunal do dirigente. Mas, embora o tamanho e a natureza enérgica, Ricardo era muito querido por todos. Rigoroso na cobrança de compromissos religiosos, havia “colocado na linha” muitos marmanjos desajustados.

Olegário era infenso a qualquer tipo de culto religioso. Amélia sabia que convidá-lo à oração era pura perda de tempo.

Mas, agora a situação era outra. Era o marido que a procurava, humilde, vencido, arrasado, buscando ajuda. E então Amélia criou coragem e fez o temido convite: – Quer orar comigo? Olegário olhou para Amélia, visivelmente surpreso. – Orar? – Pensou Olegário. – Dava-se conta agora que nunca mais rezara. Desde os primeiros passos que a finada mãezinha lhe ensinara, na infância, em direção a uma religião, logo abandonados na juventude, Olegário nunca mais adentrara em um templo religioso. Na verdade, tratava os sacerdotes com desprezo. Os espíritas como fanáticos. E os crentes como bitolados.

Mas a dor promove milagres em nosso coração. E somente o sofrimento, como diria Gandhi, é capaz de abrir a compreensão interior do homem.

Olegário olhou fixamente nos olhos da esposa. Segurando-a pelos ombros, fez algo que Amélia nunca vira. Emocionada, viu grossas lágrimas correndo pelo rosto de Olegário. Abraçou-o para confortá-lo e ouviu em alto e bom som: – Se é a oração ao seu Deus que lhe dá a energia para me suportar e me apoiar, sim, está na hora de eu passar a ter uma religião.

Nem eu mesmo mais me conformo com o meu modo de ser. Preciso mudar!

Inicialmente com passos vacilantes, sentindo-se um verdadeiro “peixe fora d’água”, Olegário entrou de braços dados com Amélia no pequeno centro espírita. Imediatamente o grupo de atendimento fraterno da casa rodeou o casal.

Receberam-nos fraternalmente. Olegário foi sentindo o calorzinho agradável da solidariedade. Aquelas criaturas estavam realmente preocupadas com ele. E fariam de tudo que estivesse ao seu alcance para ajudá-lo e a bem recebê-lo naquele ambiente outrora considerado estranho por Olegário.

Finalmente Olegário criou juízo. Tornou-se membro ativo. Sob as orientações de Ricardão, fez o curso de iniciação à Doutrina Espírita. Utilizando-se de seus conhecimentos administrativos, passou a ajudar com as providências burocráticas da casa.

E o gênio, melhorou? Muito. É bem verdade que Amélia leva-o agora sob rédea curta. Quando começa a “pôr as mangas de fora”, fala com Ricardão. E lá vem o grupo de atendimento fraterno pedindo reunião com Olegário.

Vive hoje modestamente. Mas, encontrou paz. E mais do que isso, encontrou-se numa religião. Amélia não abre mão dessa tranquilidade. E Olegário está sendo encaminhado para o grupo que aplica passes magnéticos no centro, nas casas de doentes e em hospitais. Nunca esteve tão centrado e tão feliz. Encontrou-se com Deus. E não cansa de afirmar em alto e bom-tom: – Abençoada esposa Amélia! Abençoado Ricardão! Abençoada Doutrina Espírita!
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Segundo J. Herculano Pires, o homem precisa “substituir as introjeções negativas e desordenadas do inconsciente por positivas e racionais”. Para facilitar esse desiderato, Deus nos concede uma série de talentos para as nossas vidas.

Temos que saber usá-los. Quando o poder sobe à nossa cabeça e passamos a usar mal os dons e as riquezas que nos foram dados por empréstimo, verdadeiros alarmes são disparados na espiritualidade. Uma alma está para se transviar.

Está para perder irremediavelmente o projeto de vida com que foi aquinhoado. Surgem dificuldades, doenças, limitações, como verdadeiros alertas para que retomemos o juízo e o equilíbrio. E se isso não acontece? Ah! As dores se agravam de tal forma até que o indivíduo se ajuste novamente. Não foi pelo bem. Irá, com certeza, pela dor. Até que passemos a respirar e a vivenciar o positivo e o racional.

Valorizemos os dons de Deus, respeitando-os como fiéis depositários dos talentos que nos foram confiados.

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Sidney Francez Fernandes

É espírita desde a infância, voluntário e orador do Centro Espírita Amor e Caridade de Bauru-SP, faz palestras por todo o Brasil, funcionário aposentado do Banco do Brasil, colunista da Rádio Alô, e divulgador da mensagem cristã por todos os meios e mídias possíveis.